Corpo-memória

O espelho no chão do quarto

O espelho quebrado no chão do quarto mostra que não foi fácil. Mostra que não foi amoroso e nem indolor. As marcas de sangue que meus pés deixaram no corredor, enquanto eu me arrastava ate o banheiro indicam que a peleja foi longa.

Por muito tempo eu pensei que aquilo fosse amor. Por muito tempo eu pensei que aquilo fosse sexo. Por muito tempo eu pensei que era mesmo louca, ciumenta e culpada pelas nossos brigas e nossos problemas. Por muito tempo eu pedi desculpas porque eu não queria deixar você mal. Me lembro ainda da sensação de dor de ter meu corpo violado. Me lembro dos pensamentos de que apesar daquilo não ser bom, era assim que deveria ser, para ser bom pra você. Me lembro de sorrir para o espelho, preocupada em como a minha aparência precisava estar adequada ao que você gostava. Eu achava que isso tudo era amor. O espelho no quarto observava tudo isso.

Observou o começo, as boas conversas, nossas risadas, os jogos do Real Madrid, às vezes que chorei, da mesma forma que observou suas mentiras, todas as manipulações e a forma como eu morria ao longo dos anos.

Quando o espelho quebrou, eu poderia nem ter percebido. Eu estava tão alheia de mim mesma, que nem se quer me reconhecia mais. A dor que eu senti nos pés nem se comparava ao que você já tinha me feito passar, mas eu não assumiria em voz alta. Mas o sangue, jorrando pelos os cortes, insistiu em gritar. Saia dai. Se levante, e corra. Mas eu estava tão anêmica que não conseguiria correr. Me arrastei para fora do quarto, em busca de ar e um pouco de álcool para limpar os cortes. Não pensava em ir para muito longe, afinal, aquilo tudo que você dizia sentir por mim e fazer comigo, era amor. Depois que vi a verdade, desabei. Nunca mais voltei. Deixei você, o espelho, nosso quarto e a casa. Tive tanto medo de voltar, que me privei de viver historias incríveis. A ferida do pé ainda insistia em me relembrar do espelho quebrado no chão do maldito quarto, que me roubara tantos bons momentos e me causara tanta dor. O medo, assim como a dor do corte, passaram… mas ficou uma cicatriz, e junto com ela, um sentimento avassalador de ódio e raiva.

Pensei em voltar e atear fogo a casa. Queria vê-la queimar até as estruturas. Mas o espelho não queima. Nem você. O ódio não faria bem a nenhum dos dois, mas insistia em me relembrar, assim como o sangue no corredor, que você não era boa coisa, amor, mas que a culpa nunca foi minha. Mesmo que sua voz ainda ecoe na minha cabeça. Mesmo que eu ainda tenha medo quando outra pessoa me segure com força. A culpa não é minha. Nunca foi. A raiva nunca passou, e talvez nunca passe. Mas a mágoa… ela vai diminuindo aos poucos, trocando de lugar com o nojo, com a ansiedade. É uma troca de sentimentos que me deixa confusa e fora do controle, da mesma forma como você sempre fazia. É uma luta constante. Mesmo você não estando mais aqui, luto com a sombra de tudo que você me causou, e isso é tão cansativo….

Por fim, restou-me a dor. A velha companheira com quem dividi aquele quarto e que conhece aquele espelho quebrado no chão, tão bem quanto eu. Hoje, sinto que ainda posso doer todas as dores que doem. Mas não vou morrer amor, não mais. Porque naquele dia, você me matou. Mas deveria tê-lo feito direito. Como não fez, ressurgi da forma que pude e consegui, e andando sobre os pés que um dia foram cortados e sagraram enquanto deixavam você, eu sigo firme em busca da minha felicidade e de esquecer você, que como aquele espelho, naquele dia, despedaçou-se em mil pedaços, me cortando… mas que eu deixei pra trás.

Sempre tem alguém pra me dizer que estou falando muito alto ou que não preciso ser tão incisiva, mas a verdade é que o tempo passa e eu continuo ficando mais ácida e as pessoas mais chatas. Não gosto de barulho, não gosto de gente. Gosto de chás e cachorros fofinhos. Não toque no meu cabelo.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Privacy Preference Center